sábado, 8 de outubro de 2011

CAPITALISMO NÃO É IDEOLOGIA

O despotismo da economia
Cacá Diegues, 7 out 2011
O capitalismo não é uma ideologia, mas um modo de viver. Ninguém o inventou, ele não tem pai nem mãe, não adianta botar a culpa no Adam Smith ou na Margareth Tatcher. O capitalismo nasceu, digamos assim, por geração expontânea, como uma necessidade humana surgida lá atrás, quando os homens da caverna começaram a conviver entre si. Um coletor deve ter sentido frio demais naquele inverno e teve a ideia de trocar um cacho de uva pela pele de urso do vizinho caçador. Estava criado o notório e tão vilipendiado mercado, lugar de encontro, entendimento e trocas, onde você pode e deve satisfazer suas necessidades satisfazendo as necessidades dos outros. Pensando bem, o erro foi de quem batizou a coisa toda, dando-lhe esse nome horrivel, frio, excludente e desumano - capitalismo.
Esse mecanismo básico das relações humanas desenvolveu-se e endiabrou-se de tal modo que acabou gerando frutos diversos e às vezes divergentes como, por exemplo, o criador Steve Jobbs e o especulador Warren Buffet, dois ícones opostos do capitalismo contemporâneo. Em qualquer caso, é de tal ordem sua promessa de recompensa que Jacques Lacan, o maior pensador da psicoanálise pós-freudiana, considerou que para resistir ao capitalismo é preciso ser santo.
O pior desse capitalismo contemporâneo, o capitalismo financeiro que gira como uma roleta nas bolsas de valores do mundo inteiro, é a dependência material e simbólica que a humanidade vive hoje da economia. Uma tirania mítica em que a economia substitui o indiscutível poder divino da Idade Média, com seu terrorismo financeiro e promessas de apocalipses inquisitoriais, se não seguirmos seus sinais proféticos, suas tábuas de mandamentos. Um dos piores motes dos últimos tempos é o famoso chiste eleitoral: “É a economia, estúpido”. Uma piada que, considerada esperta e virtuosa, atrasou a importância da política por algumas décadas.
O  mundo precisa dar um jeito de aprender a viver sem a opressão da economia, sem o seu despotismo. Não é possível que, ao acordarmos, nosso primeiro pensamento seja sempre para ela e seus números, como indicação do que faremos pelo resto do dia e de nossas vidas.
Entramos em pânico se o dólar cai, pois é ruim para nossas exportações; mas se o dólar subir, isso é fatal para o controle da inflação. O humor de funcionários de agências regidas por interesses financeiros que não conhecemos (“porta-vozes do fim do mundo”, como diz o humorista Tutty Vasques) desclassificam países que, abalados, se tornam vítimas de desconfiança e são levados ao caos sem que se saiba bem porque. Os sábios condenam o gasto dos governos e, no entanto, é o custo do salvamento dos bancos privados, quebrados pela crise que provocam, que leva ao súbito aumento da dívida pública, onde quer que ele aconteça.
No meio do clamor de receio pelos sinais de inflação, li interessante lembrança histórica do insuspeito Paul Krugman. Na crise mundial do final dos anos 1920, todos temiam pelas consequências de uma hiper-inflação na Alemanha. Mas o desastre exemplar, diz Krugman, veio “das políticas de Heinrich Brüning, chanceler da Alemanha de 1930 a 1932, cuja insistência em equilibrar déficits e preservar o padrão ouro tornou a Grande Depressão ainda pior na Alemanha do que no resto da Europa, preparando o terreno para você sabe o quê”.
Nem tudo pode ser apenas econômico em nossas vidas. Em entrevista recente ao jornal inglês “The Guardian”, o cineasta Jean-Luc Godard anunciou que tinha a solução para a dívida da Grécia. Segundo ele, cada vez que um credor dissesse que o país lhe devia tanto e logo tinha que pagar-lhe, a Grécia devia responder cobrando royalties pelo uso desse “logo”, elemento fundamental da lógica formal de Aristóteles. E assim iriam cobrando royalties por tudo o que inventaram e, ao fim de pouco tempo, era bem capaz de os credores estarem devendo uma fortuna à Grécia.
A vida é mais importante que a economia, a primeira não pode estar submetida ao despotismo da outra. Os valores de nosso mundo vêm sendo estabelecidos pela aritmética da especulação, sem projeto que inclua o bem estar da humanidade, para dizer o mínimo. Até já esquecemos o pretexto do progresso que justificava o capitalismo produtivo. Sei que a humanidade não é mesmo lá grande coisa e que o mundo vai estar sempre muito aquém de nossos projetos. Mas se ignorarmos o desejo contido nesses projetos, perderemos o sentido de nossa existência. É claro que também queremos o progresso. Mas entre o progresso e a civilização, vou escolher sempre a civilização.
Tenho a impressão, por exemplo, que é em nome disso que  milhares de americanos estão, desde o dia 17 de setembro, ocupando Wall Street, num movimento político e cultural que, em breve, será tão importante quanto foram os dos anos 1960. Entre os cartazes estendidos por eles na praça Zuccotti, vi um que dizia tudo: “Deixem-nos viver”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário