A queda de um outro muro
Cacá Diegues - NY, 20 outubro 2011
Eu não podia vir a Nova York sem visitar os ativistas do movimento “Ocupem Wall Street”. Desde 17 de setembro (e até o momento em que escrevo esse texto), eles estão acampados numa praça perto do famoso centro financeiro da cidade, do país e do mundo. Dali atraem a atenção de todos e provocam a solidariedade de muitos, mesmo que não se entenda direito do que se trata.
A confusão começa por inesperada mistura de classes, idades e profissões, instalada não em Wall Street (ruazinha estreita demais para abrigar acampamentos), mas a umas quadras acima, no Zuccotti Park, a poucos passos de onde estavam as torres gêmeas do World Trade Center. Uma multidão de turistas passeia por ali, a fotografar os ativistas cercados por policiais tensos e atentos, numa excitada marcha triangular entre o venerando beco das finanças mundiais, o espaço que restou da tragédia americana e a festa de esperança na praça.
Manifestantes de classe média, trabalhadores e desempregados, sem liderança aparente, estão instalados no chão da praça, sobre colchões, poltronas velhas, colchonetes, camas de papelão. Mas não se trata de piquenique político com gritarias, correrias e discursos inflamados. A festa é discreta e calma, quase silenciosa, com uma certa ordem na aparente e passiva anarquia, só rompida quando a polícia pratica alguma violência.
Um grupo fornece material para a confecção dos numerosos cartazes, meio hegemônico de manifestação do movimento, erguidos em silenciosas caminhadas individuais pelo acampamento. Como a de um homem alto, magro e informalmente bem vestido, que carregava pela calçada da praça um cartaz onde se lia: "Os sionistas controlam a economia americana". A persegui-lo, uma moça baixinha tentava acompanhar seus passos largos, contrapondo ao dele o seu próprio cartaz: "Não concordo com ele".
Na tarde em que estive lá, jovem e numerosa banda multirracial, formada por uma infinidade de instrumentos de percussão e apenas um trompete como solista, tocava “Mas que nada”, de nosso Jorge Ben Jor, de um jeito meio atravessado, a repetir exageradamente aquele trecho que diz: “obá, obá, obá”. Não vi ninguém cantar a letra, mas todo mundo dançava alegremente ao som desencontrado do clássico de Ben Jor.
Um cartaz anunciava: "Dê um alô para o mundo". Os interessados deviam se colocar diante de pequena câmera digital, se ver reproduzidos numa tela de computador portátil e falar para o mundo o que bem entendessem. Em geral, protestos e denúncias, acusações ao sistema financeiro e aos bancos pela crise econômica, pela falta de emprego, pelo abismo social entre as classes. “Nós somos os 99% da América”, dizia um rapaz negro se referindo, por exclusão, ao 1% de ricos que garantia controlar o país. Uma senhora de cabelos brancos, carregando sacola de supermercado quase vazia, não entendeu muito bem o espírito da coisa – concentrada, ela reclamava do tratamento que o marido lhe prestava no lar.
Os raros discursos coletivos são quase sempre sobre assuntos práticos, relativos à sobrevivência na praça. Só mais recentemente começaram a pensar em uma lista de reivindicações políticas e sociais. Na segunda feira anterior à minha visita, depois de longo debate, conseguiram chegar às duas primeiras: emprego para todos e defesa dos direitos civis. Todo mundo sabe porque foi parar no Zuccotti Park, mas parece que quase ninguém tem uma ideia precisa de para que serve o movimento, o que deve acontecer em seguida. É como se um mal estar estrutural estivesse substituindo os programas ideológicos.
Apesar dos três anos de atraso, é evidente que o movimento é uma reação à crise iniciada em 2008, o anúncio de um confronto com os responsáveis por ela, o sistema financeiro e os bancos. Parte de seus ativistas pretende seguir buscando reivindicações próprias que atendam aos interesses de todos os manifestantes, antes que chegue o inverno, o movimento se disperse e os desempregados virem candidatos a mendigos. Mas outros preferem evitar essa objetivação do movimento, mantendo sua imagem original, difusa e descontínua. “The process is the message”, como apareceu no facebook desses.
Potencialmente, "Ocupem Wall Street" tem a cara dos movimentos libertários dos anos 1960, aqueles dos direitos humanos, dos estudantes que não queriam ir para o Vietnam, do movimento negro, dos hippies – uma feira de esperança, um desejo de justiça, uma experiência de convivência humana distendida, um sonho que a humanidade vive sonhando de tempos em tempos. Mas também é um espaço onde as idéias parecem sufocadas pelo malestar que tomou o lugar da luta política.
A melhor resposta sobre seu futuro foi dada por Hendrik Hertzberg, na revista New Yorker. Ele lembrou que, quando Richard Nixon perguntou a Chou En Lai qual tinha sido o impacto da Revolução Francesa no mundo, o então primeiro ministro chinês, parceiro de Mao Tsé Tung, respondeu que ainda era cedo demais para se avaliar. Só precisamos ficar atentos para que não avaliemos o “Ocupem Wall Street” um pouco tarde demais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário