Carlos Diegues, 29 de julho de 2011
Comecei a ouvir o disco novo de Chico Buarque, “Chico”, no mesmo sábado em que tomei conhecimento da morte trágica (mesmo que tão anunciada) de Amy Winehouse. Durante as primeiras horas de audição do CD e do simultâneo noticiário na televisão, meu coração esteve partido entre dois mundos tão igualmente inspirados, criativos e exemplares. E eu chorava, sem saber por quem chorar.
A felicidade não é um estado permanente em nós, apenas vivemos momentos felizes e infelizes ao longo de nossas vidas. E é preciso fazer render os primeiros, que devem ser serenos e cheios de pudor, algo que se curte como quem bebe um bom vinho de garrafa que sabemos que um dia vai precisar de outra. A euforia é a cara de uma moeda juvenil cuja coroa é a depressão.
Ninguém pode saber, ninguém tem o direito de ousar dizer do que morreu a grande artista que foi Amy Winehouse. Ninguém conhece a origem exata de sua dor, muito menos o tamanho dela. Só nos cabe deplorar que tal fogo, chama que nos iluminou tanto em tão pouco tempo, tenha se apagado tão mais cedo do que gostaríamos.
Já Chico, sem comparações impossíveis, nos ensina a viver.
Arthur Nestrovski, em notável artigo no Estado de São Paulo, nos lembra que, sendo talvez o nome mais recorrente no país, cada vez que dizemos apenas Chico sabemos que é a ele que estamos nos referindo. Como se ele fosse não apenas íntimo nosso, mas também único.
Neste “Chico”, são admiráveis as rimas toantes (“sobra/abóbora”, “toca/vodca”, “mapa/rapta”, tantas outras tão belas). Como é incrível a astúcia de suas canções na passagem de tons maiores a menores e vice-versa. Ou como está cada vez mais barroca a sensual e rigorosa estrutura arquitetônica de suas canções. Ou ainda como a originalidade de seu canto se aproxima paradoxalmente de um encontro entre a ironia do sambista esperto (sua dicção nas primeiras sílabas da palavra “esquecimento”, por exemplo, nos remete a um hilário “uísque”) com o romantismo de chansonnier contemporâneo.
Mas, de tudo que esse grande artista nos entrega em seu novo disco, o que me toca fundo é a serenidade ao encarar a vida, essa “obscura trama”. Como ele mesmo diz, Chico chega “macio” à sua idade, tratando o amor como algo que, mais do que excita, impregna. Só um homem capaz de preservar sua identidade em total liberdade é capaz de chegar a tal integridade artística e existencial.
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E por falar em liberdade, seu preço é mesmo o da eterna vigilância.
Essa semana, a Justiça, a pedido de um partido político, o DEM, proibiu a exibição do filme “A Serbian Film – Terror sem Limites”, do diretor sérvio Srdjan Spasojevic. A decisão foi reiterada pelo Ministério da Justiça que, mais adiante, se negou a dar-lhe uma classificação indicativa, o que impede a circulação nacional da obra.
Não vi esse filme sérvio. Mas pela descrição feita por quem já teve essa oportunidade, ele deve ser mesmo muito violento, como seu título informa. Mas certamente será menos perverso, desumano e insuportável do que aquilo que se viu acontecer na Sérvia real, há alguns anos, durante a guerra étnica em que foram massacradas multidões de inocentes com métodos cruelmente sofisticados.
Podemos até supor que esse “Terror sem Limites” não passe de uma pobre alegoria didática do horror real que a Sérvia conheceu durante a guerra. Uma daquelas obras que nos permite assumir que nunca mais algo parecido deve acontecer de novo, sob hipótese alguma.
Mas a questão fundamental não está no conteúdo do filme proibido e sim na própria idéia de proibi-lo. O autoritarismo está sempre no ovo da serpente que extingue a liberdade.
Se o filme assim o merece, crianças, adolescentes e jovens menores de idade devem ser protegidos de vê-lo, basta para isso interditá-lo para menores de 21 anos. Mas, ao cidadão adulto e livre, deve-se no máximo uma informação do que se trata a obra, para que não seja apanhado de surpresa, se for o caso.
O que não podemos admitir é que alguém pretenda pensar por nós, nos dizer o que devemos e o que não devemos ver, ler ou ouvir.
Não precisamos de governantes que tratem a população como um bando de crianças imbecis, às quais se interdita o conhecimento e a informação que os poderosos não julgam convenientes, sejam de que natureza forem. O maior prazer que um ser humano pode ter é o de pensar por sua conta, não quero que ninguém o faça por mim.
A chamada Constituição Cidadã de 1988, vigente no pais, proibiu qualquer tipo de censura à obra de arte, a não ser a classificação indicativa por idade. O contrário disso é a barbárie de uma ditadura pura e simples. Esse filme a gente já viu e ele ficou em cartaz durante longos 21 anos.
Antes que eu me esqueça. Para seu conhecimento, o titulo desse artigo é um verso tirado da canção “Sem você 2”, do disco “Chico”.
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