sábado, 16 de julho de 2011

O CALOTE DA DÍVIDA AMERICANA POR CACÁ DIEGUES

O fator das mudanças

Carlos Diegues, 15 de julho de 2011

Para nós da geração que viveu o auge da Guerra Fria e da obsessão anti-imperialista, o anúncio do potencial calote da dívida americana mais parece uma abertura de conto surrealista, ficção científica de esquerda agravada pelo papel da China como seu principal credor. Em nossa memória, a ruína do Império Soviético, naqueles anos de Gorbachev, de Yeltsin e da queda do muro de Berlim, se torna até plausível, razoável e muito simples de entender se comparada à quebra dos Estados Unidos, o império mais rico e poderoso que a humanidade já conheceu.
Nesta semana, aqui mesmo em O Globo, o economista Joseph E. Stiglitz, insuspeitável prêmio Nobel e professor da Universidade de Columbia, em Nova York, analisa essa possibilidade com muito realismo, acusando a direita americana de querer “revogar as leis básicas da matemática e da economia”.
Como não sou economista e não entendo muito de contas públicas ou privadas (à exceção das que faço com Renata, para produzir nossos filmes!), quando tomei conhecimento pelos jornais do quebra-quebra de bancos, durante aquela bolha imobiliária de 2008, imaginei que o tempo do mercado soberano e sem restrições, o mercado absolutista que se impusera desde os anos 1980, havia chegado ao fim. E quando vi as agências de crédito dos estados americano e europeus socorrerem com dinheiro público os que iam à bancarrota, até pensei que um novo keynesianismo estivesse se impondo à economia mundial pela força mesma das coisas.
O caso me interessou mais ainda quando li no New York Times que, do primeiro montante de recursos então solicitado pelo presidente Barack Obama e aprovado pelo Congresso americano, cerca de 800 bilhões de dólares, um pequeno pedaço ia para a ampliação da rede de exibição digital de filmes, nos Estados Unidos e no mundo, garantindo assim maior circulação para a produção de Hollywood. Em plena crise nacional, o estado americano não estava se esquecendo de socorrer também a cultura que há pelo menos um século ajudava a consolidar seu poder planetário.
Mas, como insiste Stiglitz e outros comentaristas em pânico,  a lição de 2008 não se converteu em costumes mais sadios, não provocou um novo, mais sensato e mais razoável comportamento de um mercado indisciplinado, desembestado e cego pelo voluntarismo do lucro imediato, a qualquer custo. O outro, também conhecido como o “próximo”, continuou fora da planilha das empresas, a sociedade seguiu sendo uma distante superstição de alguns chatos, a felicidade voltou a bater à porta do mercado, agora que ele sabia que o estado está aí mesmo para cobrir-lhe qualquer imprevisto mais desagradável.
Como num daqueles formidáveis thrillers morais dos anos 1940, com Humphrey Bogart, Edward G.Robinson e Veronica Lake, a segunda chance ofertada ao vilão não foi aproveitada por ele. O vilão não se regenerou e continuou a cometer os mesmos excessos de sempre, agora até mais confiante – se o próprio mercado não resolver a parada, o estado paga a conta por ele. A conta e os bônus de seus executivos sortudos.
Bem, não me sinto nem de longe capaz de prever o que vai acontecer com a economia americana ou com a China ou com o resto do mundo. Nunca tive, nem posso almejar vir a ter, um prêmio Nobel a me garantir sobre minha estante.  Mas é evidente que Obama não deseja a bancarrota da economia americana, assim como Wen Jiabao não vai gostar nada de dormir cheio de papéis podres do tesouro ameriano debaixo de seu travesseiro. A tragédia desses novos senhores do mundo é que eles podem muito pouco, se comparado ao que já puderam um dia.
Esses anos todos de hegemonia absoluta do mercado criaram uma rede de poder inconsútil, às vezes maior e mais poderosa que a do próprio estado. Não se trata mais dos lendários “barões ladrões” que fundaram o capitalismo americano no século 19 e que estavam muitas vezes dentro do próprio estado, manipulando seus recursos e seu poder político. Trata-se agora de um poder que não se confunde com o outro, pois não é institucional, não tem eleitor a quem prestar contas, não deseja o peso e o prejuizo dos compromissos políticos, muito menos se interessa pela pequena corrupção autárquica.
Se frequentarmos com atenção o mundo das coisas, veremos que não somos, nesse universo, os únicos seres sociais com um projeto coletivo para sua comunidade ou para sua própria espécie. A formiga, a abelha, o golfinho, muitos animais vivem uma vida social tão intensamente organizada quanto a nossa. Mas enquanto eles cumprem seu papel sem consciência do que fazem ou do que são, nós somos os únicos a ter consciência de nossa individualidade. Ou seja, a ter consciência do que somos e a ter consciência da existência do outro.  
Mas a economia de mercado sem limites não pode levar em consideração o benefício dos outros. O tipo de compromissos enredados nessa economia globalizada, e portanto dependente, dificilmente permite mudanças em nome da ordem politica ou simplesmente humana. E as mudanças necessárias no mundo de hoje deixaram o terreno da pura economia, seja de direita ou de esquerda, mesmo que dentro da legalidade representativa.
O que pode mudar o mundo de hoje passa necessariamente por um valor moral – a divisão entre os que se importam e os que não se importam com o outro. E isso nenhum político, por mais virtuoso, resolverá sozinho.
 
carlosdiegues@uol.com.br
  
 

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