Já temos duas matérias sobre este assunto no blog.
Quarta, 13 de outubro de 2010, 08h13
Sufocando pluralismo jornais estimulam censura
Marcelo Semer
De São Paulo
De São Paulo
A demissão da colunista Maria Rita Kehl logo após e em razão de um artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo já seria ruim por si só se representasse apenas um ato de intolerância.
Como lembrou Eugênio Bucci, nas mesmas páginas do Estadão, a intolerância desacredita e desautoriza, sobretudo, o próprio intolerante.
Mas a punição fez um estrago ainda maior. Introduziu, de vez, e pela porta dos fundos, a imprensa no centro do debate eleitoral. É certo que no primeiro turno, o embate que não ocorria entre a candidata favorita que evitava se expor e o candidato de oposição, que evitava se opor, acabou sendo substituído por um debate de alta intensidade entre o presidente da República e a grande imprensa, com acusações mútuas.
Lula atribuía à imprensa o papel disfarçado de partido de oposição e recebia como resposta a pecha de autoritário e censor. O resultado desse custoso confronto foi o de fazer com que jornais, como o próprio Estadão, explicitassem suas preferências na eleição. Por coincidência, o artigo de Maria Rita se iniciava justamente com o elogio à franqueza do jornal, por ter comunicado aos leitores seu apoio a José Serra.
O desgaste político com as declarações do presidente e a contenda generalizada com a grande imprensa provocaram um ambiente exageradamente belicoso e o assunto da parcialidade foi sendo amenizado na campanha petista. Senão por convicção, ao menos por conveniência.
A demissão de Maria Rita Kehl reintroduziu involuntariamente o tema, em especial nas redes sociais, que o vivenciaram de forma intensa e instantânea.
Não se poderá contar a história da eleição de 2010 sem discutir o papel nela desempenhado pela grande imprensa.
E como o debate político entre as duas candidaturas seguiu esvaziado de conteúdo, inclusive pela introdução proposital de falsas questões que o atrapalharam, como o caso do aborto, o tema cresceu de importância.
É mais ou menos como se parássemos o jogo do Brasil, em face uma narração enviesada de Galvão Bueno, ao invés de discutir os gols de Kaká, ou a falta deles. Trata-se de uma regra de ouro do jornalismo, em que o repórter deve evitar, o tanto quanto possível, tornar-se ele mesmo a própria notícia, obscurecendo os fatos que pretendia cobrir.
Mas essa, apesar de tudo, ainda não foi a conseqüência mais drástica do evento.
Um jornal censurado, como o Estadão, que reproduz tal informação diariamente há mais de um ano em suas páginas, como insígnia, jamais podia estimular uma punição pela opinião.
Este é o cerne da liberdade de expressão - que as pessoas não sejam punidas pela exposição de suas idéias.
A liberdade de opinião é o combustível da democracia, mas não é possível tragar a chama apenas para si, sufocando o oxigênio dos demais. No estado democrático de direito, as liberdades não são excludentes.
O jornal Folha de S. Paulo, por sua vez, ajuizou ação para proibir uma sátira realizada por blog independente, que lhe parodiava de forma crítica.
Segundo o jornal, não se trata de censura, mas apenas da defesa de marca.
Não discuto aqui o mérito da ação ou da decisão judicial.
Apenas observo que os políticos que buscam a Justiça para esconder escândalos das páginas dos jornais também alegam que não pleiteiam censura, mas tão-somente preservar a intimidade ou o seu direito à honra.
Sinto-me à vontade para criticar a ambos, pois tenho escrito, inclusive nesta coluna, que é a ação de juízes que revigora a censura na democracia, com as proibições prévias de artigos ou matérias, supostamente justificados pela defesa de reputações.
É preciso criar uma cultura de tolerância e um ambiente de liberdade para a imprensa, justamente porque não há democracia sem ela. Mas quando é a própria imprensa quem estimula o clima de censura e punições, só podemos imaginar que alguma coisa está fora da ordem.
Há quem possa dizer que a colunista não passa de uma funcionária do jornal e pode ser livremente demitida por escrever contra sua linha editorial.
É verdade. Mas trata-se aqui de defender, então, não a liberdade de expressão, e sim a propriedade privada.
Até mesmo a propriedade privada deve atender a sua função social. Isso é mais do que um panfleto ou palavra de ordem, é um princípio constitucional.
É evidente que não se pode controlar o que um jornal publica. Toda forma de censura será, sempre, um exercício arbitrário de poder.
Tampouco é possível exigir objetividade, tal qual se aprendia nos antigos manuais de jornalismo. Mesmo o quem, como, quando, onde, dependem do espectador e as mais diversas influências interferem criando diversidade de olhares. Assim também são os juízes, que interpretam diferentemente as normas, sem que uns ou outros, possam ser culpados por agirem assim.
Por tudo isso, nos resta o pluralismo, como escape e defesa da liberdade. Está em seu exercício a responsabilidade social dos jornais.
O pluralismo é a premissa da liberdade de expressão. Ela existe justamente para garanti-lo.
Somos livres, sobretudo, para expressar nossas diferenças.
Sufocar o pluralismo em nome do exercício da liberdade não é apenas um contra-senso. É um verdadeiro paradoxo.
Nenhuma democracia prescinde do pluralismo. E a responsabilidade dos órgãos de imprensa, livres em uma sociedade livre, é estimulá-lo e não amputá-lo. Os interesses pessoais, empresariais ou mesmo partidários, inclusive durante uma eleição, jamais podem sobrepujá-lo.
O pluralismo é o pai do "outro lado", da contraposição, da alteridade.
É a voz que expressa a opinião que não nos pertence, da qual não gostamos, aquela que mais nos incomoda. E justamente por isso é tão necessária. Porque não seríamos capazes de formulá-la por nós mesmos.
A Constituição outorga à imprensa a estatura de interesse social.
Não a reduz a uma mera atividade comercial.
Proíbe expressamente toda forma de censura, para garantir sua liberdade, e lhe concede imunidade tributária, como incentivo custeado por toda a sociedade para o desempenho de uma atividade relevante para o bem comum.
O que se espera dos órgãos de imprensa é que ajam com a mesma responsabilidade social com que foram tratados pela lei, abrindo oportunidades para que as opiniões possam circular livremente.
Porque o jornalismo não pode encontrar limites na democracia. Mas a propaganda sim.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.
Fale com Marcelo Semer: mailto:%20marcelo_semer@terra.com.br
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