sábado, 12 de março de 2011

PÃO E CIRCO COM DIREITOS - DE CACÁ DIEGUES

Pão e Circo com Direitos
Carlos Diegues, 10 março 2011
Nos últimos oito anos, Gilberto Gil e Juca Ferreira acertaram várias vezes à frente do Ministério da Cultura, sobretudo em sua modernização, cujo ponto alto foi a criação dos Pontos de Cultura. Mas infelizmente a sombra do voluntarismo e da volúpia de intervenção do estado na criação artistica andou sempre rondando algumas decisões do MinC de Gil e Juca, desde o desastrado projeto da Ancinav.
No final do ano passado, esta sombra caiu mais uma vez, agora sobre o projeto de uma nova lei de Direitos Autorais, estendendo sua repercussão aos primeiros dias da nova ministra Ana de Hollanda. E é incrível como alguns intelectuais e certos setores da sociedade civil se apressaram a receber com ressentimento e quatro pedras na mão o gesto democrático da nova titular da pasta, que apenas propõe a revisão do projeto para torná-lo mais de acordo com o que pensam seus beneficiários. Ou vítimas potenciais.
Talvez por saudades da truculência e do despotismo de  administrações e regimes anteriores, essas pessoas confundem a serenidade, tolerância e doçura da ministra com falta de energia ou de decisão, com “autismo”. É óbvio que Ana de Hollanda está apenas querendo por à disposição do julgamento de todos os duvidosos termos do projeto elaborado por alguns.
Guardo com cuidado um trecho do discurso de posse da presidente Dilma Roussef, uma rara referência à cultura feita por pessoa pública de sua importância e responsabilidade: “A cultura é a alma de um povo, essência de sua identidade. Vamos investir em cultura, ampliando a produção e o consumo em todas as regiões de nossos bens culturais, e expandir a exportação de nossa música, cinema e literatura, signos vivos de nossa presença no mundo”. A presidente sabe que quem fabrica essa “alma de um povo” são os homens que a criam. E, assim como os que nos alimentam e produzem comida contra a miséria do povo, eles precisam ser remunerados para cumprir seu papel com pertinência e dignidade.
Ninguém tem dúvida de que as novas tecnologias de produção e difusão artísticas vão exigir novos modos de remuneração autoral, sobretudo diante de uma nova cultura pós-industrial em marcha acelerada. Tenho até uma certa simpatia pelo Creative Commons, embora não veja nele nada que não esteja na lei atual, onde todo artista tem o direito de abrir mão, total ou parcialmente, de seus direitos autorais. Mas crucificar Ana de Hollanda porque ela pôs em discussão a opção compulsória pelo CC e decidiu levar isso a um democrático debate público, só pode ser má-fé.
No passado longínquo, os artistas não eram senhores de sua obra. Michelangelo Buonarotti pintou sua obra-prima, a Capela Sistina, por encomenda do Vaticano, a poderosa “major” da época, e teve que discutir plano a plano, a cada pincelada que ali dava, com seu “producer”, o Papa Julio II. Os artistas não tinham como viver, se não fosse trabalhando para os poderosos, reproduzindo suas imagens e costumes para grandeza deles, de seus partidos e de suas religiões. E Príncipes e Papas descobriram que era uma boa ideia patrociná-los.
Mesmo que isso contrarie os pensadores da esquerda infantil, o que libertou os artistas desse controle foi o pensamento iluminista, que descobriu o valor diferenciado do indivíduo, simultaneamente ao mercado criado pela revolução industrial, que pagou por sua originalidade e contribuição ao progresso.
Sem o mercado, não haveria a arte moderna, livre dos interesses do poder, independente da consagração dos barões. Não haveria Dickens ou Balzac, Manet ou Picasso, Ravel ou Stravinski. Mesmo um gênio como William Shakespeare não era bobo de tentar contrariar Elisabeth I e a dinastia dos Tudor com suas peças, embora tenha sido exatamente ele o primeiro a compreender, em seu famoso e fundador Theatre, a importância do público para a conquista de sua liberdade.
O mercado estabeleceu o direito do artista dizer o que pensa sobre o estado do mundo, independente do que pensam os que mandam nele. Primeiro através da produção de protótipos e depois de reproduções, com uma multiplicação de valor que acabou sendo decisiva até mesmo para o PIB das nações. No momento em que surge no horizonte planetário as luzes de uma nova cultura pós-industrial, cognitiva e virtual, ainda de dificil descrição, o Brasil segue engatinhando no portal das economias criativas.
Como remunerar tudo isso com justiça, se ainda pensamos num estado que teria o direito de desapropriar o que saiu de nossas cabeças e que portanto só pode nos pertencer?
Li recentemente uma entrevista de Lewis Hyde, respeitado pensador do mundo virtual, em que ele diz que “assumindo que existe uma verdadeira incongruência entre ganhar a vida e fazer arte (por que?, digo eu escandalizado), muitos artistas escolhem uma vida de pobreza voluntária,  vivem com pouco e constroem sua obra”.  Ora, essa ideia de “pureza” do artista como resultado de sua indispensável pobreza, esse seu exílio do mundo concreto, em vez de ser uma visão do futuro, não passa de uma tentativa de empurrá-lo para antes do Renascimento, uma tentativa de medievalização da arte, uma conspiração de fundamentalistas da tristeza em sua eterna melancolia do paraíso perdido.
Anos atrás, em um de meus filmes, “Um trem para as estrelas”, fiz um personagem popular, interpretado pelo grande Zé Trindade, dizer a um jovem músico que começava sua carreira: “Não se esqueça, meu filho, quem precisa de arte é o público, artista precisa é de dinheiro”. O que significa mais ou menos que, assim como quem dá o pão precisa ser remunerado, quem dá o circo não pode morrer de fome. A nobreza da arte que não cobra pela sua produção é um malicioso golpe dos poderosos, afim de manter os artistas dependentes do rei e portanto incapazes de dizer se Sua Majestade está nu.

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