sábado, 20 de novembro de 2010

FUNDAMENTALISMO DA TRISTEZA

Carlos Diegues, 19 nov 2010

Como o mundo não está nada fácil e a humanidade ainda não se acostumou às novidades, nunca se escreveu tanto sobre felicidade, como vou fazer agora. A soberania iluminista, que se impôs ao longo dos últimos três séculos, nos iludiu com a possibilidade de termos o controle de tudo; e, de repente, não sabemos como agir diante da evidência de que nada obedece ao roteiro traçado por nossas crenças.
De nada adiantou Spinoza nos alertar, no início da idade da razão, para o fato de que a natureza não tinha nenhum plano para a humanidade. Como nada adiantou Charles Darwin nos explicar com quantos acasos se fez a vida como ela é. À tradição do humanismo cristão se somou o cristianismo laico das ideologias redentoras que apontam para o fim triunfal da história, no paraíso dos justos, na sociedade sem classes ou na harmonia com a natureza.
Com isso, desprezamos a importância de nossos pobres sentimentos. Eles seriam comandados por fatores externos, revoluções da matéria ou do espírito que nos levariam a um futuro bem-estar qualquer. Verdade e Realidade se tornam deidades, indiscutíveis e únicas, que norteam nosso comportamento no mundo.
É verdade que Freud e Einstein, cada um em seu ramo de negócios, popularizaram dúvidas em torno dessas ideias. Mas eles não viveram o suficiente para compreender que mesmo o relativo é relativo e nada será mesmo para sempre. Se não tivessem contado a Édipo que Jocasta era sua mãe, os dois teriam vivido felizes, com seus quatro lindos filhinhos, o resto de suas vidas.
Nossa vontade vale muito pouco. Ou, no limite, muito menos que nosso desejo. Sendo a vontade um exercício intelectual em nome de um projeto e o desejo uma necessidade a que só os santos resistem, como no capitalismo visto por Lacan.
Einstein e a ciência quântica abriram nossos olhos para o fato de que realidade e verdade são apenas uma relação entre o observador e a coisa observada. Como escreve Marcelo Gleiser, nosso grande astrofísico e ensaista, “a objetividade imparcial se torna obsoleta, já que mente e realidade se tornam inseparáveis”. O que desmoraliza o terrorismo crítico e seu rigor caricato – o  que ele pensa estar na obra, está muitas vezes em sua própria mente.
A confiança total na razão, como se coubesse exclusivamente a ela iluminar nosso caminho com seus potentes faróis de absoluto, secou nossas almas de tanta coisa que nossos ancestrais usaram tanto para podermos chegar até aqui. Em seu livro mais recente, o filósofo francês Edgard Morin (que, aliás, teve um papel importante na construção do cinema moderno) declara que hoje, vivendo num planeta tão pequeno e tão superpovoado, alvos de informações inclementes das quais nem sempre necessitamos, só nos resta a solidariedade pura e simples, sem prévio conteúdo ou estratégia estabelecidos.
No último Festival de Cannes, alguns jornalistas europeus (sobretudo franceses) começaram a questionar a tristeza dos filmes contemporâneos na moda, o pessimismo e o elogio da impotência que atravessavam grande parte dos melhores filmes ali exibidos, a começar por alguns que seriam premiados no final do certame. O que chamei de fundamentalismo da tristeza, uma fé dogmática no fracasso da humanidade e em sua incapacidade de seguir em frente. Assim, só é contemporâneo aquilo que for triste, só é iluminado aquilo que apontar para a escuridão.
Ainda bem que, logo depois de Cannes, fomos convidados para participar do Festival Lumière, na cidade francesa de Lyon, onde o cinema foi inventado em 1895. Este festival, dedicado à projeção popular de filmes antigos, recuperados e restaurados em diferentes países, seria aberto pela exibição de uma cópia nova de “Cantando na Chuva”, o musical clássico dos anos 1950, de Gene Kelly e Stanley Donen (que, com quase 90 anos de idade, estaria presente à sessão).
Ali, no Halle Tony-Garnier, um secular abatedouro transformado em arena pública de espetáculos, eu e Renata, minha mulher, nos juntamos a 5 mil pessoas que celebravam juntas o simples fato de estarem vivas e poderem dançar, aplaudindo aos gritos e assobios cada novo número musical. Esse prazer que estamos aprendendo a perder, na solidão de nossos home-theatres, na melancolia de nossos estreitos multiplexes.
A meu lado, um velho amigo, o cineasta italiano Marco Tulio Giordana, com lágrimas nos olhos, me dizia que “esse filme era de quando a gente achava que o mundo tinha jeito”. Pois bem, o mundo não tem mesmo jeito, sempre foi e sempre será assim. E a humanidade também não é lá grandes coisas. Mas foi nele e com ela que nos foi dado viver, é com ambos que temos que negociar convivência e sobrevivência.
O homem feliz é um mito da adolescência da humanidade. O que existe são momentos de felicidade e de infelicidade, com duração variável. O que nos cabe é fazer com que esses momentos durem mais ou menos, conforme nossos desejo e preferência. Dante Alighieri nos informou que o inferno é aquele lugar em que, ao entrar, você deixa a esperança na porta. O inferno, portanto, é a ausência de esperança.

carlosdiegues@uol.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário