De Carlos Diegues – 3 dezembro 2010
Li artigo recente do presidente da Ancine (Agência Nacional de Cinema), Manoel Rangel, na “Folha de São Paulo”, em que, com toda razão e discernimento, ele afirma que “felizmente, hoje já está disseminada a compreensão de que qualquer país que deseje ter um futuro no cenário mundial deve ser um grande centro produtor de audiovisual (...) Não é por outro motivo que todos os países de economia avançada têm construído instrumentos de política pública para lidar com a importância econômica, simbólica e cidadã do mercado audiovisual”.
Mas logo sou informado de que, durante discussão sobre a renovação pelo Congresso do Artigo 1º da Lei do Audiovisual (artigo que autoriza o investimento privado em produção audiovisual, através de incentivos fiscais), Manoel Rangel teria afirmado que, se isso não acontecer, a atividade não será prejudicada, pois empresas como o BNDES já se comprometeram a aplicar os mesmos recursos, por meio de outros mecanismos. Não sei que outros mecanismos são esses, mas sei que uma lei feita para ser cumprida é coisa muito mais republicana que compromissos difusos e, às vezes, pouco confiáveis.
Existe uma Medida Provisória, a MP 501, aprovada pelo presidente Lula, com apoio de todos os sindicatos e representações formais da atividade, que manda renovar esse Artigo 1º da Lei do Audiovisual, para que continue a haver investimentos privados no setor. Essa MP vai ser votada no Congresso nesta próxima semana e não é admissível que correligionários, aliados e colaboradores do governo a boicotem ou se mantenham neutros diante dela. Sobretudo porque a consequência imediata de sua rejeição será a paralização da atividade.
Por outro lado, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, um servidor público que, junto com Gilberto Gil, elevou o patamar de valor e respeito de seu ministério, vem repetindo declarações de que a política de financiamento da cultura deve ser revista. Em reunião recente do Conselho Superior de Cinema, ele teria afirmado, por exemplo, que os recursos de incentivos fiscais são “recursos públicos” e que "se uma empresa, por causa dos chamados custos operacionais, recebe mais de 100% de retorno sobre o que investe em projetos audiovisuais, não seria melhor transformar esses recursos em orçamento?”.
Não, ministro, não seria. Primeiro porque não é verdade que esses recursos sejam públicos, isso é uma superstição que nos foi politicamente imposta para nos culpabilizar e nos manter dependentes dos caprichos do governo, qualquer governo.
Os valores de incentivos fiscais são uma riqueza criada, em seu primeiro e original momento, pela iniciativa privada. Depois, parte dela é confiscada pelo estado, na forma de tributos. O mesmo estado que, num terceiro momento, devolve o que foi confiscado ao contribuinte responsável por sua produção, afim de que ele o invista na atividade escolhida. Tem sido assim na desoneração fiscal de automóveis e eletrodomésticos, em todas as iniciativas desse mesmo gênero, nesse mesmo governo. Por que não pode ser assim também na cultura, como aliás o é em tantos países pelo mundo afora?
O que nos sugere o eventual fim dos incentivos fiscais é a velha fórmula de administração paternalista do estado, financiando obras através de seu orçamento e portanto selecionando aquelas que mais lhe convêm. Esse seria um salto para trás, um imenso recuo depois de tanto esforço de modernização dos mecanismos de financiamento da cultura e do cinema, um esforço que vem progredindo desde 1950, quando Alberto Cavalcanti voltou ao Brasil e nos ensinou o modo europeu de produção no pós-guerra. E não esqueçamos que o ministro da Cultura que criou e assinou a primeira lei de incentivos fiscais para a atividade foi nada mais, nada menos que Celso Furtado.
O ministério da Cultura e a Ancine têm seguido um rumo correto nos programas de salas populares de exibição e na busca de um espaço na televisão para o audiovisual brasileiro, como está na PLC 116, em discussão no Congresso. Ou como é o projeto do Vale Cultura, o mais eficiente e democrático modo de financiar o consumidor da atividade. Mas cadê o Vale Cultura? Por que não se luta por ele com o mesmo empenho com que se deseja acabar com a participação da iniciativa privada no cinema?
E esse recuo todo acontece num momento em que o cinema brasileiro produz quase 100 filmes por ano, estoura bilheterias com sucessos de vários gêneros, ocupa mais de 20% de seu próprio mercado, se impõe junto a críticos e festivais, revela inúmeros novos cineastas com novíssimas ideias como se viu nos festivais de Tiradentes e Brasília de 2010. Ou seja, num momento em que devíamos estar tratando de aprimorar o que levou tanto tempo para começar a dar certo.
Não sonho com uma Albânia do Sul para a cultura brasileira. O império do estado e sua burocratização na produção cultural do país seria a negação do processo de desenvolvimento em liberdade de suas indústrias criativas e de novas tecnologias convergentes que se multiplicam e que desejamos livres, leves e soltas. É sobre isso que devemos, agora, nos debruçar e nos empenhar. Engessar desde já esse futuro, domesticar sua luz selvagem com o bloqueio do estado único e unívoco, aquele que fatalmente exigirá o conteúdo que lhe for mais conveniente, é um grave crime contra a criatividade neste país.
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