Carlos Diegues, 16 dezembro 2010
Anoiteceu, o sino gemeu. Então eis aí o Natal, podemos ouvir de novo “War is Over”, de John Lennon, sem temer que nos chamem de piegas. E, como na canção, ainda podemos perguntar, agora que o ano se aproxima do fim, pelo que você tem feito na vida.
Eu queria que fosse tudo como está no ensaiozinho de Jorge de Lima, “Todos cantam sua terra”. O grande poeta afirma ali que o catolicismo é uma marca profunda na formação da cultura ibérica. Mas enquanto na Espanha se manifesta por excelência através da paixão de Cristo, em Portugal se funda no auto de seu nascimento. Entre o Cristo Crucificado e o Menino Jesus, herdamos o lirismo desse, exorcizando a tragédia irreparável daquele. Preferimos as expectativas da vida às dores da morte, mesmo que redentora.
Será verdade?
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O cineasta italiano Etore Scola me disse uma vez que era mais fácil entender a Itália do pós-guerra através das comédias de Steno, Risi ou Monicelli, do que por meio dos clássicos do neorealismo. Mario Monicelli, o autor de filmes extraordinários como “Os eternos desconhecidos”, “Os companheiros” ou “O exército Brancaleone”, matou-se recentemente, com pouco mais de 90 anos de idade, jogando-se da janela de um hospital onde se internara em estado terminal, com câncer na próstata.
Está aí alguém que, em seus filmes, sempre esteve do lado da vida. Monicelli era um humanista crítico que se divertia com a existência e a fragilidade dos seres humanos. Seus personagens, sempre cheios de projetos mirabolantes, nunca acreditam de verdade que sejam capazes de realizá-los e acabam mesmo fracassando. Mas o fracasso é a descoberta da vida de fato, aquela que passa a nosso lado enquanto fazemos planos (mais uma vez, Lennon). Ele não ria de seus personagens. Ria com eles. Da vida.
Amigos comuns me contam que, sabendo de seus tumores fatais, em acelerada metástase, Monicelli pedira que o deixassem morrer logo, para evitar maiores sofrimentos. Os médicos se recusaram a atendê-lo e ele decidiu pela eutanásia por conta própria. Detesto suicidas, não sou complacente com eles, não respeito gesto tão agressivo, não vejo grandeza nele. Mas no caso de Mario Monicelli, um artista iluminado, um grande cineasta que escondia seu pessimismo por trás da graça de um permanente sorriso de solidariedade, alguma coisa me diz que ele tinha esse direito.
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O pecado original talvez seja nosso irreprimível desejo de ordenar o mundo. Acho que foi a necessidade de sobrevivência em ambiente hostil que nos obrigou a isso. E nossa secular educação cartesiana, um desejo irracional de absoluta racionalidade, acabou por não nos permitir contemplar o duplo, aquilo que é e também o seu contrário.
Não só tememos a diferença, como também não conseguimos conviver pacificamente com o conflito. Diante do outro, nosso instinto é de tentar eliminá-lo, acabar com a perturbação que nos causa. Nesse mundo contemporâneo de espetáculo e exibição, o outro que nos perturba (a diferença) pode ser também o sucesso de alguém que nos obriga a pensar sobre o valor de nosso desempenho.
Podemos amar uma estrela consagrada como Chico Buarque, contanto que ele fique no seu lugar, produza sua grande arte muito longe do palco em que atuamos. Se resolver jogar futebol, os outros jogadores não podem reconhecê-lo como craque, seria demais para a afirmação deles nas quatro linhas da vida. Assim como pode bater em nós uma certa sensação de fracasso pessoal ou de simples ameaça, quando vemos suas peças tão oportunas e lemos os belos romances que já escreveu.
Não sou do ramo. Mas se entendi bem, “Leite Derramado”, seu romance mais recente, ganhou o tradicional prêmio Jabuti de melhor livro do ano, mas perdeu o de melhor ficção para outro. Isso gerou revolta em alguns editores, escritores, jornalistas e intelectuais, que chegaram a pedir a Chico que devolvesse o prêmio.
Mas, pelo que li no jornal, tal premiação já ocorrera antes na história do Jabuti e ninguém nunca reclamou, porque não são os mesmos os jurados que outorgam os dois prêmios, uma decisão não tem nada a ver com a outra, sendo essa a regra do jogo desde sempre. Mais ou menos como no futebol, onde o Goiás disputou a final da Copa Sul-Americana, tendo sido rebaixado à segunda divisão do Brasileirão. Ou no cinema, quando diretores de filmes laureados como os melhores do Oscar e dos festivais são ignorados na premiação de sua categoria.
Por trás dessa aparente purgação de um erro, está na verdade a necessidade de punir quem nos humilha tanto com sua indiscutível grandeza. O outro, quando é exemplar, pode ser pior do que se fosse inimigo. E um Jabuti é pouco, o Brasil deve muito mais do que isso a Chico Buarque.
Devolve não, Chico.
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E já que estamos no espírito de Natal, filmando recentemente no Acre, o único estado do país que fez guerra para ser brasileiro, encontrei numa sala de aula de ensino fundamental, escrita no quadro negro, a seguinte citação de Nelson Mandela.
“Ninguém nasce odiando outras pessoas pela cor de sua pele, por sua origem, ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender. E, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”.
Batem os sinos.
carlosdiegues@uol.com.br
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