sábado, 15 de janeiro de 2011

RECONHECER O ERRO TRÁGICO

Carlos Diegues – 14 janeiro 2011

Em “Burden of Dreams”, documentário exemplar de Les Blank sobre a produção de “Fitzcarraldo”, obra-prima obsessiva e masoquista de Werner Herzog, o grande cineasta alemão presta um depoimento assustador, no meio da floresta amazônica que ele tentava em vão submeter à realização de seu filme.
Com os olhos inflamados e a voz áspera, Herzog, o santo guerreiro, afirma para a câmera que, cada vez que ouvia os sons desordenados da floresta, enlouquecia com o desejo de discipliná-la, pôr uma ordem em sua anarquia natural, impedir a fornicação geral dos elementos que se destroem mutuamente.
Não tenho dúvida de que, como criadores iluminados, os  melhores artistas fazem de suas obras um rascunho do que fariam no lugar de Deus. Todo grande artista tende sempre ao desejo de corrigir os equívocos do Senhor e é assim mesmo que deve ser. Desconfio que o pecado mortal, a primeira afirmação de identidade do homem, aquela que causou a expulsão do paraíso, tenha sido mesmo essa volúpia de ordenação do mundo.
Quando inventou a cultura e, com ela, costumes e instrumentos, casas, cidades, meios de transporte, e tudo o mais que o diferenciava dos bichos e das plantas, o homem se tornou um adversário da natureza. Para fazer o que imaginava, teria que enfrentá-la e certamente ferí-la. A ilusão perversa era a de que ele podia dominá-la, controlá-la, organizá-la segundo simplesmente seu proveito próprio. Tornamo-nos um perigoso virus a ameaçar a saúde do mundo, destinado a degradá-lo pela contaminação de nossos gestos, pelo desejo de dar uma nova ordem à natureza.
Não foi para isso que viemos ao mundo e que nos desenvolvemos de tal maneira que somos seus únicos habitantes capazes de pensá-lo. Como dizia Spinoza, a natureza não tem nenhum projeto para a humanidade. Como a natureza não tem consciência de nossa existência, é impossível viver em harmonia com ela. Mas com a natureza não se brinca e não se briga, com a natureza só se negocia. A única linguagem que ela entende é a da negociação.
É bobagem achar, como Rousseau e os românticos, que os chamados “primitivos” viviam e vivem em harmonia com a natureza. Indio morre cedo, sempre morreu cedo, exatamente porque seu conhecimento de defesas contra ela sempre foi precário. Mas os indios sabem negociar com a natureza, sobretudo porque não têm a pretensão da ciência que pensa entendê-la plenamente.
Há alguns anos, fazendo um documentário sobre eles, convivi, sem nenhuma pretensão antropológica, com uma aldeia xavante recém- contactada, no vale do rio São Marcos, no Mato Grosso do Sul. Durante essa curta convivência de dias, o que mais me impressionou foi o sistemático conselho noturno, em torno da fogueira, em que os mais velhos (ouvidos e prestigiados exatamente por terem sobrevivido tanto) ensinavam aos adolescentes os termos dessa negociação com a natureza, o que podiam e não podiam fazer com ela.
Na recente tragédia na serra fluminense, a natureza andou sendo previamente desrespeitada e insensatamente enfrentada. Como na aldeia xavante, o Poder Público, escolhido pela população para cuidar de nós, como os indios idosos cuidavam de seus adolescentes, tinha a obrigação de nos explicar até que ponto podíamos ou não avançar sobre ela. Como deixar que se contrarie o comportamento da natureza, achando que se pode submetê-la assim, de graça?
A decadência do poderoso Império Romano coincide com mudança climática radical, a partir de 250 d.C., para a qual seus líderes e sábios não estavam preparados. A Revolução Francesa encontrou clima social propício à sua eclosão, depois que, em 1783, a erupção de um vulcão na Islândia, semelhante à de um ano atrás, destruiu, com suas cinzas, grande parte da agricultura no continente europeu, gerando fome imprevista e generalizada. No livro “Colapso” (cujo oportuno subtítulo é “como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso”), Jared Diamond, seu autor, nos conta como guerras e disputas políticas e econômicas devastaram a pequena Ilha de Páscoa, no Pacífico Sul, a ponto de destruir uma civilização avançada que tinha sido capaz de construir aquelas gigantescas esculturas de cabeças, hoje alinhadas no deserto de pedras em que o lugar se transformou.
Ninguém se lembra de quem evita o incêndio, a natureza exibicionista do espetáculo humano exige que só celebremos os heróis que apagam o fogo e salvam suas vítimas. Mas prevenir é sempre mais eficiente e completo que remediar – e ainda sai mais barato. E remediar, afinal de contas, é admitir, reconhecer  o trágico erro.
Não é possível que, em países como Portugal e Austrália, catástrofes semelhantes, com muito mais volume de água, tenham matado respectivamente 42 e 19 pessoas, enquanto na serra fluminense, até o momento em que escrevo, são mais de 500 as que despareceram na enxurrada. Hoje, a prevenção pode chegar a tempo, ser rápida e eficiente, pode alcançar a todos. Plataformas tecnológicas como a televisão, a internet e mesmo celulares, facilitam seu acesso imediato à população.
Parece até que o Poder Público (federal, estadual, municipal, distrital, o que seja) prefere esconder as informações prévias, com medo de se responsabilizar por elas, tendo que se dar ao trabalho de conter a ocupação irregular de terrenos ou remover famílias de áreas de risco. Mas, nesse caso, o Poder Público não existe para agradar os cidadãos e sim para protegê-los, intermediando sua indispensável negociação com a natureza.
 
carlosdiegues@uol.com.br
 
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2 comentários:

  1. Poderiamos entender as palavras do prefeito de Rio de Janeiro? Favor acompanhar o trágico erro de um homem público brasileiro!

    http://engforum.pravda.ru/showthread.php?303786-quot-I-don-t-know-if-the-state-%28Rio-de-Janeiro%29-and-these-cities-have-meteorologists-quot-PAES&p=3257096#post3257096

    Armando Rozário - Cabo Frio, 15 de Janeiro 2011

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  2. Segundo Paes, sequer as imagens captadas pelo radar poderiam ter sido repassadas a outras instâncias:
    According to Paes, even the images captured by the radar could have been transferred to other agencies:
    - Não sei se o Estado e essas cidades têm meteorologistas.
    - I do not know if the State and these cities have meteorologists.
    A Secretaria de Saúde e Defesa Civil do Estado informou que a oferta da prefeitura é "genérica", e ainda não houve tempo para decidir como serão feitas as análises das imagens do radar.
    The Department of Health and the State Civil Defense reported that the city's offer is "generic" and not yet had time to decide how they will be made to the analysis of radar images.
    Segundo a assessoria do órgão, os técnicos só seriam responsáveis pelo repasse dos boletins meteorológicos, por e-mail, aos municípios.
    According to the advisory organ, the technicians would be responsible only for passing the weather reports, e-mail, to the municipalities.
    Cada prefeitura seria encarregada de efetuar um plano de contingência.
    Each municipality would be required to make a contingency plan.
    No entanto, a secretaria não divulgou se há meteorologistas em seu quadro de funcionários.
    However, the department did not disclose whether there meteorologists on his staff.
    O problema também é destacado pelo meteorologista Manoel Gan, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
    The problem is also highlighted by Manoel Gan meteorologist with the National Institute for Space Research (INPE).
    - Ainda faltam radares e outros sistemas de detecção de tempestades, mas o maior déficit é de profissionais - critica.
    - Still lacks radar and other detection systems of storms, but the largest deficit is professional - criticism.
    - Esses equipamentos requerem mão de obra especializada.
    - These facilities require skilled labor.
    E, daqui a cinco anos, a grande maioria dos meteorologistas que ainda estão na ativa já terá se aposentado.
    And in five years, the vast majority of climatologists who are still active will have already retired.

    Armando Rozário - Cabo Frio - 15 de Janeiro 2011

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